Liberais Vermelhos

Somos liberais. E somos vermelhos. Ainda vai discutir?

quinta-feira, novembro 16, 2006

Eis o imperador acadêmico.

Em abril de 1996, o físico Alan Sokal, professor da New York University, enviou à "Social Text", conceituada revista norte-americana na área dos Estudos Culturais, um artigo intitulado "Transgredindo Fronteiras: Em direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica". Título pomposo, bonito, fascinante. E era exatamente esse o objetivo do físico, uma vez que tratou-se de uma pegadinha acadêmica. A revista publicou o artigo, que não dizia absolutamente coisa com coisa.
Explico melhor: o objetivo de Sokal era colocar em questão duas coisas: a falta de rigor dos editores da revista e criticar as teorias relativistas pela utilização indevida de conceitos das "ciências naturais" para argumentar seus pontos de vista. Para tanto, escreveu um texto utilizando uma vasta seleção de conceitos e argumentos sem sentido, baseando-se em pura retórica e em palavras bonitas, complicadas e vazias para convencer o leitor. E conseguiu, pelo menos boa parte dos "não-entendidos" no assunto.
Se os objetivos do autor foram plenamente atingidos, ou se ele estava certo em sua crítica, não é o que pretendo tratar agora. O que me espantou nessa história foi a reflexão sobre o peso que um nome científico pode ter na aceitação de determinado conhecimento, principalmente no campo da história, onde as "provas" são bem mais... hum... relativizadas.

Foucault, no primeiro capítulo de "Em defesa da sociedade" e em "A Ordem do Discurso", coloca em xeque as condições de produção, circulação e aceitação do discurso, e coloca, por tabela, as condições de não-aceitação e censura do mesmo. É fato que a instituição acadêmica como um todo (universidades, centros de pesquisa, simpósios, congressos etc.) têm um peso fundamental na divulgação desse discurso que se diz científico e, por tal título, se pretende superior aos demais discursos. Isso não escapou ao filósofo francês. E um nome institucionalizado tem um peso considerável nesse processo de aceitação.

Fosse um físico qualquer, e não Sokal, teria o artigo sido aceito tão simplesmente? Ou teria passado por uma crítica mais rigorosa? Fosse um artigo de história escrito por nomes de peso, seria ele alvo de leituras mais críticas, mais rigorosas?

O que determina a aceitação ou não de um discurso como verdadeiro é sua aceitação ou não pela comunidade científica. Fora daí, é tachado de senso-comum, discurso limitado, pseudo-discurso. Creio que apenas agora a ciência, ao menos as ciências humanas e as biomédicas, começam a levar a sério os chamados "saberes populares", principalmente nas áreas de história oral, memória social e fabricação de remédios. Fora desse engatinhar, as instituições científicas adquiriram um peso considerável, semelhante ou pior do que o peso que as instituições religiosas detinham no passado. A ascensão do capitalismo como sistema hegemônico tem relação direta com isso, talvez, ao estimular uma ciência pragmática, aplicável.

Comentários de um blog não seriam levados a sério numa tese de doutorado, a não ser que o blog fosse de um peso pesado acadêmico. Os nomes têm um poder seríssimo, e apenas nomes consagrados conseguem criticar nomes consagrados nessa disputa de gato-e-rato acadêmica. Talvez chegue o dia em que os discursos em si serão levados mais a sério do que o local onde são produzidos ou a pessoa que fala. Talvez...

Em tempo: não estou me isentando desse modo de ser das coisas. Também estou inserido nessa ditadura no nome próprio. Se quero aceitação acadêmica, preciso jogar de acordo com as regras. Não estou falando de uma revolução completa, mas de pequenos avanços e extensão de espaços. Talvez, de milho em milho, a gente encha o papo algum dia.

Fonte: http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/entrevista_USP.html

segunda-feira, novembro 13, 2006

Endossando o "mal"...

A velha rixazinha entre pós-modernos e hermeneutas nunca fez tanto sentido a mim quanto nos últimos tempos. De onde parte a pancadaria central? Bom, o assunto começa na própria concepção de "ser" de ambas as partes. Por mais que não se possa conceber uma noção de "indivíduo" universal e comum a todos os autores pós-modernos, vide as diferenças ideológicas e conceituais existentes entre eles, é fácil averiguarmos que todos concordam de maneira cabal num ponto: não se resume um indivíduo à sua condição externa, nem muito menos a seu meio social. Para estes, isto é discurso (oh, novidade?!) de "sistemão", maneira de tentar limitar o homem à sua época. Para os hermeneutas, estes pensadores já mais fáceis de abarcar num "grupo sólido", o homem é homem enquanto ser social, se criando e recriando o tempo todo e estando sujeito às condições do seu próprio tempo. Creio que ambas as partes tem lá seus pontos válidos, mas não é intenção minha ficar aqui tomando partido de quaisquer destes rapazes. O ponto central, e que escapa à boa parte dos estudiosos sem visão ampla de ambas as correntes, é que o discurso hermeneuta tem o caráter de justificar (ou legitimar, caso você seja mais maldoso, hehehe) atos a partir de uma visão contextualizada de seu tempo. E isto eu demorei a compreender com profundidade. Não por acaso, numa aula destas no curso de filosofia (uh, culto eu, não?), um professor bem pós-moderno brincou comigo quando eu citei um hermeneuta (Arendt, pra ser mais exato...): "Ah, hermeneutas? É tudo padreco! hahahaha". Todos riram. O bobão aqui não entendeu de cara. O bobão aqui só compreendeu o comentário após ler um ensaio de um acadêmico católico acerca da obra de Agostinho. O tal ensaísta justificava as beteiróis ditos pelo "santo" filósofo apostólico a partir dessa mesma noção hermenêutica de história: "Ah, ele disse que as mulheres deveriam ser destruídas pelo poderoso deus cristão pelo simples fato de ver suas ações, naquela época, como pecado. Isto tudo, entretanto, não torna menor sua capacidade enquanto filósofo." Nada contra o cara compreender o que levou o cidadão a pensar assim. Agora, tudo contra o cara defender alguma instituição ou indivíduo a partir dessa "compreensão". Entender não é endossar. O que é moralmente condenável prum sujeito deve ser levado literalmente a sério. Defenda sua visão, tome partido! Debata, não perdoe por simpatia... Bom, mas depois de tanto blá blá blá, acabei não explicitando meu ponto nessa discussão toda. Belo dia, estava eu brincando com um dos meus pós modernos favoritos, o digníssimo e insano Antonin Artaud. Artaud atacava de maneira veemente a separação entre autor e obra (saibam, a base do Teatro e seu Duplo, do mesmo autor), ou seja, o que o autor produz deve condizer com "aquilo que ele é". A arte e a vida devem se fundir. Não tenho nem como negar a minha adoração a esse ideal do teatrólogo, mas nunca havia me dado conta, até relacionar a questão com o problema hermenêutico, de como isso tudo é problemático. Se eu não posso separar autor e obra, então eu não poderia NUNCA aceitar ou rejeitar (amar ou odiar!) o primeiro em detrimento da segunda (ou vice versa), sem um altíssimo grau de hipocrisia e/ou de superficialidade envolvidos no julgamento. Quer dizer então, que caso eu admire qualquer constructo da estética nazista eu estaria, mesmo que de maneira inconsciente e "honesta", endossando algo concernente nazismo? Para Artaud, sim. Na sua noção de "razão", isto seria perfeitamente cabível e "menos criminoso com a alma humana" do que a fragmentação ideológica. Mas quem quiser compreender a "racionalidade artaudiana" que vá ler o cara. O nó da questão é: posso amar a arquitetura católica e estarei fechando os olhos ao ascetismo e aos "os crimes morais" da instituição religiosa (de acordo com a moralidade atual, é claro!)? Posso ouvir uma banda com influências neo-nazis enquanto e estar, desta forma, endossando algo do nazismo? Posso me dizer marxista ou liberal e estar, da mesma forma, sendo condizente com ditaduras totalitárias? A resposta, em todos os casos, não apenas para o pobre Artaud, mas também para mim, é SIM. Esperneiem os hermeneutas com seus "julgamentos fragmentados" acerca das criações humanas. A arquitetura católica, a música nazi, a doutrina política, todas essas construções históricas são PERMEADAS por ideologias e SUBJETIVISMOS oriundos, quando não totalmente, em grande parte desses mesmos constructos históricos. Tentar separá-los e admirar "a parte boa" não é apenas uma fragmentação positivista e surreal. É, acima disso, um mal-caratismo gritante com a própria noção de conhecer (e conceber!) o homem segundo a sua condição, tão amada pelos hermeneutas. Sentiu-se um pouco mais nazista, católico e totalitário hoje? Que bom. Estamos aqui justo para incomodar.

Liberdade de expressão ou liberdade para o Sader?

Liberdade de expressão é um direito que não é dado, é conquistado. Conquistado a cada dia, a cada instante. Em todas as nossas atitudes, lá está o esforço para aumentar o círculo onde podemos expor livremente nossas idéias. E a única forma de aumentar o diâmetro desse círculo é sair dele por um instante, transgredir, abusar.

Algumas pessoas abusam demais. Devemos calá-las? Óbvio que não. A liberdade de expressão deve ser mantida, mesmo sob fechado cerco ideológio e sob patrulha do politicamente correto. Felizmente, há mecanismos aos quais podemos apelar contra aquela transgressão abusiva, a transgressão que nos ofende, que nos intimida, que visa a nos caluniar e desprestigiar perante nossos semelhantes.

O que o Emir Sader fez foi abusivo. Saiu das críticas elaboradas, das acusações possíveis para entrar num terreno perigoso, de acusações criminais sem provas. Deve ser calado? Claro que não. Tem todo direito de se expressar como quiser, na linguagem que quiser, no veículo que puder.

Vou mudar a pergunta: deve ficar impune? Não sei. Existem leis a serem cumpridas nesses casos. Jorge "Bohnhausen" está errado em processar? Não, não está, assim como há pessoas que processam o Mainardi, o Olavo, o Jabor e outros farofeiros e são aplaudidas pelo mesmo público que chama de "censura" o processo contra Sader. Pra uns, o processo; pra outros, a compreensão. É essa a esquerda que queremos? Essa esquerda limitada, oportunista. de um pragmatismo egoísta?

Não concordo com a punição que foi aplicada a Sader, mas isso não significa que ele deva ficar impune se a lei entender que cometeu uma falta. A lei deve valer pra todos, vermelhos e liberais. Voltando ao que falei lá em cima, a liberdade de expressão é um direito a ser constantemente conquistado. Conquistado com esforço, com luta, com grito, mas também com responsabilidade, ética e coragem. Responsabilidade pra falar o que pode provar, ética para não distorcer argumentos que serão usados, coragem para assumir a culpa sobre o que falou, para não voltar atrás, para não se esconder. Nos três casos acho que o Sader falhou.

Sem dúvida a esquerda precisa ser renovada. E as ossadas enterradas de vez.