Liberais Vermelhos

Somos liberais. E somos vermelhos. Ainda vai discutir?

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Britney Spears sem calcinha

Dizem por aí que a violência está banalizada. Dizem por aí também que o sexo, mais do que nunca, está banalizado. Como eu adoro dizer, é o tempo do pós-guerra fria, a juventude toda é filha da globalização, do capitalismo financeiro, da sociedade de consumo desenfreado. À nossa volta vemos as celebridades instantâneas, os novos fanatismos religiosos, a publicidade imperativa que diz "compre", "tenha", "faça" – outro dia mesmo vi na rua um anúncio de carro surpreendente (ou não) que dizia algo do tipo "compre este carro e pegue todas as mulheres que você quiser" (como se mulheres heterossexuais não comprassem carros, mas tudo bem). O mundo está perdido, a sociedade é uma merda, todo mundo só quer se dar bem e só pensa em dinheiro – estes são alguns dos muitos clichês que escuto por aí. Além dos medos que devemos sentir, claro: em 50 anos os Estados Unidos vão invadir o Brasil pra roubar a água da Amazônia; em 60 anos a camada de ozônio estará destruída e todos morreremos queimados pelos raios ultra-violeta XYZ; os alimentos transgênicos vão causar uma mutação multi-celular nas mitocôndrias do complexo de Golgi dos seus neurônios e por causa disso nascerão novos pares de olhos no seu rosto; ano que vem a CLT será finalmente flexibilizada como não-sei-quem quer e ninguém mais vai ter férias nem 13º. E eu ainda tenho que aturar o moço religioso e alarmado pelo fim dos tempos pregando o evangelho do 14º apóstolo na entrada do metrô da praça Saens Peña.
Não seria difícil enumerar outros mil motivos pelos quais muitos consideram que o apocalipse está próximo (ou algum outro tipo de fim de mundo ou coisa que o valha, para os não-religiosos). Mas eu – na posição de filha do pós-guerra fria devidamente globalizada e digitalmente incluída – eu quero tratar de algo em que tenho pensado um bocadinho ultimamente e que, para umas pessoas que freqüentam os debates feitos na internet, é um anúncio e uma evidência da podridão da sociedade tanto quanto essas outras coisas que citei: a calcinha da Britney Spears. Digo, a falta dela.
Olha, eu sou sim uma pessoa séria, quero dizer antes disso. Se você me perguntar qual o pensamento do Heidegger acerca da metafísica e qual a crítica que ele faz ao existencialismo ateu sartreano, eu sei responder. Sei falar sobre a teoria contratualista do Leviatã de Hobbes e de como ela pretendia servir para legitimar o poder do soberano na Europa do Antigo Regime. Mas eu também leio as notícias do site Babado, do Glamurama e da revista Contigo, e foi num desses aí que vi a Britney saindo sem calcinha de um carro pela décima vez. E depois vi no orkut e no jornal O Globo essa gente do senso-comum (que, no fundo, somos eu e você também) dizendo o quão execrável é essa atitude, e usando um único argumento: "ela só quer aparecer". E o fato de querer aparecer seria conseqüência de uma vontade de voltar a estar no centro das atenções da "mídia" (odeio a palavra "mídia", mas às vezes sou forçada a usá-la), ou de ganhar mais dinheiro, de lançar um novo cd, de ser novamente a preferida no mundo do show bizz ou seja lá o que for mas que tenha a ver com isso. Ela quer chocar, e está fazendo isso de um jeito ridículo, é o que estão dizendo.
Deixarei de lado a minha análise psicanalítica do personagem, e também deixarei de lado as últimas notícias divulgadas a respeito da vida familiar da moça. Minha intenção não é, na verdade, defendê-la – ainda que eu seja fã assumida (mesmo reconhecendo que ela não é lá muito intelectualmente favorecida) e ainda que as músicas dela tenham feito parte da minha adolescência. Até mesmo porque Britney não é a primeira a não ter pudor de usar calcinha. Parece que a coisa está virando moda.
Deixarei de lado, também, qualquer investigação acerca da motivação da Britney, posto que fazer adivinhações está fora da minha capacidade. O que me interessa mesmo é como isso tem sido enxergado, e como uma coisa tão banal quanto a vida de uma celebridade americana, fruto da sociedade de consumo rápido e blá-blá-blá – digo, banal no sentido de ser o tipo de coisa na qual não devemos prestar atenção, como "pare de ler essas futilidades sobre a vida da Britney Spears e pegue 'Assim falou Zaratustra' ou 'Fenomenologia do Espírito' na biblioteca" – como algo desse tipo pode na verdade ser de algum valor para falar, principalmente, da condição feminina hoje (a expressão "condição feminina hoje" é muito pomposa). Não que eu seja uma grande especialista no assunto, nem um projeto de Simone de Beauvoir, mas tipo, pretendo gastar alguns anos da minha vida estudando gênero, e por isso o tema.
Ainda que seja difícil, quero tentar fugir do clichezão de "se fosse um homem, ninguém falaria nada", ou de "homem que come geral é o cara, mulher que dá pra todo mundo é puta, tá na hora disso acabar", embora eu acredite que os dois sejam boas verdades. A princípio, para mim, intimidade é uma coisa que deve ser preservada, digo, é assim que tento levar minha vida, e esse é um motivo pelo qual eu reprovaria não o fato de ela andar sem calcinha, mas de querer ser fotografada nesta condição. Mas, ao mesmo tempo, considero essas fotografias um grande progresso em relação à época em que ela fazia questão de dizer pra todo mundo que era virgem. Não porque eu ache ser putona mais legal do que ser santinha (e isso não significa que eu ache o contrário), mas porque vai na contramão daquilo que ainda se espera das mulheres de alguma forma, por mais "liberal" (não no sentido político, mas no sentido dos "costumes") que alguém seja, e que durante séculos tolheu a liberdade delas (ou nossa). A tal da banalização da figura feminina, que inclui os closes nas bundas de fio-dental na tevê aos domingos, está para mim muito longe da não-calcinha da Britney Spears porque, antes de "preciso ser sexualmente desejada", como me dizem as primeiras, essas fotos significam "eu sou dona da minha vida e do meu sexo". Pode parecer pouco, mas alguma coisa nisso é mais verdadeira que simplesmente uma roupa curta ou um decote provocante na tevê. Sei que a mocinha da qual estou falando (e cujo nome não vou repetir mais uma vez para fins de boa organização textual) tem sido historicamente adepta do recurso de "ei, eu sou gostosa, olhe pra mim", mas não é disso que estou falando – é só da foto sem calcinha, espero que esteja claro. A coisa é que nem todas as mulheres têm peitos durinhos e empinados, barrigas sem excessos ou uma bunda sem estrias nem celulite – mas, no que guardam dentro das calcinhas, todas são iguais (eu sei, é claro que não são, mas você entendeu o que quero dizer). Estar sem calcinha não é dizer "eu sou gostosa", mas "eu sou mulher e posso fazer isso". São coisas diferentes em absoluto, e a última é uma forma muito distinta de auto-afirmação – para mim, muito mais nobre, porque não passa por "sou mais bonita, mais desejada, mais isso, mais aquilo, sou melhor". Além disso, a coisa foge da tradicional e equivocada inversão de papéis que o movimento feminista já enxergou como solução para o fim do patriarcado. Perfeito.
Não que eu ache que ela tenha a intenção de revolucionar as relações entre gêneros no mundo nem nada disso. Muito provavelmente ela nem de longe reflete sobre a dominação sexual que as mulheres têm sofrido durante séculos. Mas, como a gente aprende na faculdade de História, os sujeitos históricos nem sempre têm consciência do momento que estão vivendo. Mas eu mesma não arriscaria dizer que isso é importante, nem que evidencia que passamos por uma transição, nem nada. No fundo, no fundo, só estou aqui escrevendo porque achei o máximo a mulher andar sem calcinha, ir pra boates e ser orgulhosamente muito fútil. Nem eu, às vezes, escapo da vontade de ser uma patricinha burra, gostosa e cheia da grana: parece tão mais fácil.
É claro que em algum lugar do mundo existe um babaca machista – centenas, milhares, na verdade – achando que ela faz isso porque quer dar pra alguém, seguindo os moldes do pensamento estúpido de "mulher que anda de roupa curta quer ser estuprada". Que triste.
_____________________
PS. Essa é a primeira vez que escrevo aqui. Algumas explicações são necessárias, portanto: quase nunca escrevo textos curtos, ou seja, do tamanho que um veículo rápido como a internet exige. Dificilmente não escrevo em primeira pessoa – costumo dizer que, se fosse jornalista, eu seria gonzo com toda a certeza. Sou muito pouco acadêmica. Além de tudo isso, esse texto pode sim ser considerado um bocado off-topic, embora não o seja de todo, mas acho que foi uma boa maneira de fazer o meu debut num lugar onde até hoje só homens haviam escrito.

13 Comments:

Anonymous Anônimo said...

toda opinião é válida desde q se respeite os principio dos direitos

dezembro 01, 2006 6:24 PM  
Anonymous Anônimo said...

Fala pouco essa menina, mas quando faaaaala, hehehe.

Comentei antes de ler. Depois de ler eu recomento.

dezembro 02, 2006 12:29 AM  
Anonymous Anônimo said...

Hahahaha, bem vinda ao mundo dos machos (não tinha um programa desses na tv a cabo, ambientado numa sala de sinuca, onde bebiam cerveja o tempo todo ao lado de gostosonas de decote, falavam de carros e de futebol americano?).

Muito bom texto, Carol. Gostei muito. Mal posso esperar pra ler sua monografia (se você não deixar, vou ter que roubar. É triste, mas o mundo é assim...).

Seu tom não acadêmico é o melhor de tudo. Marx de cu realmente é Hegel. Leviatã e Babado na mesma frase é perfeito, hahaha!

Continue sócia do nosso clube masculino.

dezembro 02, 2006 12:43 AM  
Blogger carolina said...

que palavras tão gentis. eu sempre tenho medo dos comentários.

dezembro 02, 2006 9:01 AM  
Blogger lurian_endo said...

um texto quase-academico sobre Britney Spears.

Se fosse academico ia ser muito pós-moderno ahuahauhauhauahuahuahauahua

dezembro 02, 2006 5:37 PM  
Anonymous Anônimo said...

nossa como vc escreve!!!
mas eu li até o final!
muito bom, ta melhor do que esses cabeludos e peludos!!
mas uma coisa vou ter que zoar: vc é fã da britney!!! que horror!!!!
mas todo mundo tem seus defeitos, te perdou!
continue a escreve aki, vc escreve muito bem!!!

dezembro 04, 2006 4:54 PM  
Anonymous Anônimo said...

Foda. Muito bom.

E é um pé na bunda dos fanáticos religiosos babacas, que invertem o ônus da questão e levantam sempre a hipótese da útlima frase do texto, devidamente colocada entre aspas. hehehehe

No fim das contas, é só mais um excerciciozinho de ego tentar "não ser fútil"; é provar algo a si mesmo. Mas é também um padrão de identidade inescapável. Quem é que consegue realizar uma série de reflexões profundas acerca da própria condição e da própria condição do mundo e voltar "desse absimo" sendo um nada qualquer no meio da multidão?

Mas, [tecla Paulo Cavalcante on/] nós somos mesmos seres iluminados que temos a missão de "remar contra a maré" (risos característicos) [tecla Paulo Cavalcante off]. Não deixa de ser, entretanto, uma posição que me incomoda.

dezembro 04, 2006 9:31 PM  
Anonymous Anônimo said...

A propósito, que a porra do Blogger pare de dar pau quando eu logar e eu não seja mais obrigado a escrever de anônimo.

Rodrigo

dezembro 04, 2006 9:33 PM  
Blogger Monsair Martuchelli said...

gostei do jeito que você escreve. adoro esse tom pessoal e humano.

dezembro 20, 2006 4:16 AM  
Blogger Paraíso Concreto said...

Bom o seu texto, mas será que a mocinha estava pensando nisso quando saiu sem calcinha? Ou é só a gente aqui que está pensando? Pra mim, a Britney Spears é mais uma daquelas estrelinhas que adora ser bisbilhotada. Eu falo sem medo de errar que ela quer ser tão desejada quanto as dancarinas do Faustão. E quando a mulher não é só uma reprimida querendo se exibir, que mal saiu do moralismo cristão, todo mundo sabe e ninguém olha se ela está sem calcinha. Eu falo isso por experiância própria. Beijos. Imaculada

fevereiro 09, 2007 3:29 PM  
Blogger carolina said...

cara imaculada, respondendo à pergunta que inicia seu comentário, cito um dos paragrafos finais do post

"Não que eu ache que ela tenha a intenção de revolucionar as relações entre gêneros no mundo nem nada disso. Muito provavelmente ela nem de longe reflete sobre a dominação sexual que as mulheres têm sofrido durante séculos. Mas, como a gente aprende na faculdade de História, os sujeitos históricos nem sempre têm consciência do momento que estão vivendo."

abril 12, 2007 9:22 AM  
Anonymous Anônimo said...

Enrolou pra caralho e só começou a dizer as coisas a partir do antepenúltimo parágrafo.

dezembro 08, 2008 8:35 PM  
Blogger carolina said...

senhor anônimo, acho que isso mostra que você entendeu o que escrevi. tem gente que se perde na explicação inicial (faz parte de um texto coeso. os acadêmicos costumam enrolar bem mais), gente que se perde e, por isso, não entende a parte onde realmente existem idéias/argumentos/whatever. claro que não é culpa minha, que escrevo super bem; é culpa dos leitores incapacitados. HAHA

maio 03, 2009 9:41 PM  

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